*Por André Cáceres
Há 60 anos, um Cessna 150 sobrevoava a cidade de Florence, no estado americano do Oregon. A bordo, um jornalista barbudo e quase quarentão observava as dunas a fim de escrever sobre um projeto para manter a areia longe da área urbana. A iniciativa de plantar uma vegetação intrusa saiu pela culatra, pois estava sufocando o bioma e acabando com habitats naturais. Até hoje o governo promove a remoção dessas gramíneas para preservar a paisagem da região. A reportagem de Frank Herbert nunca foi publicada, mas suas anotações provenientes desse voo mudaram os rumos da ficção científica para sempre.
Publicado em 1965, Duna é fruto do fascínio de Herbert pela capacidade humana de alterar o meio ambiente. Sua preocupação ecológica antecedeu até mesmo o termo “aquecimento global”, usado esporadicamente em artigos dos anos 1950, mas estabelecido só em 1975.
De forma resumida, a obra acompanha os Atreides, que aceitam deixar o trono do planeta Caladan para governar Arrakis graças a uma conspiração do clã Harkonnen, seus inimigos de longa data. Além de ser um mundo árido habitado pelos Fremen, nômades do deserto que convivem com imensos vermes da areia, esse é um planeta estratégico por ser o único produtor do mélange, especiaria fundamental para a economia do império — vale lembrar que o livro foi lançado cinco anos após a criação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo. A jornada de Paul Atreides torna-se um épico messiânico quando ele escapa do golpe dos Harkonnen e foge para o deserto.

Duna parecia impossível de filmar até que o chileno Alejandro Jodorowsky se lançou na empreitada. Seu ambicioso e esotérico esforço foi abortado por falta de apoio financeiro, mas ele recrutou artistas que viriam a revolucionar a estética de sci-fi: o capista britânico Chris Foss trabalhou no design de Superman, Alien, Flash Gordon e Guardiões da Galáxia; o quadrinista francês Jean “Moebius” Giraud fez artes conceituais de Alien, Tron e O Quinto Elemento; o artista suíço H.R. Giger foi o responsável pelo xenomorfo, o monstro de Alien. Como se pode notar, Ridley Scott se aproveitou do time reunido por Jodorowsky. Portanto, quando assumiu o novo projeto para a obra de Herbert, o produtor Dino de Laurentiis escalou o cineasta para dirigir Duna, mas uma tragédia familiar fez Scott desistir de um trabalho tão longo. A obra, então, foi oferecida a David Lynch, que finalmente conseguiu rodar o filme.
O que faz de Duna uma obra tão difícil de adaptar é também o que faz dela tão encantadora: sua complexidade, o nível de detalhamento na criação desse universo (Herbert é sempre citado ao lado de J.R.R. Tolkien como referência de worldbuilding) e suas infindáveis interpretações. Além da camada ambiental, suas dimensões política, religiosa e antropológica estão intimamente conectadas. A cultura dos Fremen, sua sacralização da água, seu modo de viver e pensar, derivam de como lidam com o ambiente hostil ao redor, o que está ligado à espiritualidade que eles nutrem em relação ao deserto e que, por sua vez, é a base da guerra santa promovida por Paul Atreides. Herbert maneja todos esses elementos sem cair no mero determinismo, o que torna a essência de Duna tão multifacetada e faz das tentativas de filmá-lo tão importantes quanto o filme em si.

Suprimindo trechos relevantes e acrescentando elementos inexistentes, Lynch, embora fiel, oferece uma visão singular sobre esse universo. A estética retrofuturista, os cenários art déco e os figurinos excêntricos ficaram cristalizados no imaginário de Duna. O filme ampliou muito a base de fãs da saga, mas não é perfeito. Além do óbvio obstáculo de se condensar 600 páginas, o material original tem muitos apêndices explanatórios e passagens introspectivas, o que fez o filme abusar da narração em off (boa parte dela adicionada na montagem à revelia do diretor). E os efeitos visuais ficaram datados, mesmo em relação a filmes da época, como Star Wars — que se inspirou tanto em Duna a ponto de Herbert brincar que fundou o clube “Somos Grandes Demais Para Processar George Lucas”.
Por contrato, Lynch não tinha controle sobre a edição final, e os cortes impiedosos do produtor de Laurentiis para diminuir a duração afastaram Duna ainda mais da visão original do diretor. Apesar do fracasso comercial que traumatizou Lynch com blockbusters, antes mesmo de sair do papel, o filme moldou a ficção científica no cinema. Duna foi adaptado novamente em 2000 pelo canal Syfy, mas o baixo orçamento não permitiu que a opulência da obra fosse traduzida para a tela. O próximo cineasta a se aventurar por Arrakis será o canadense Denis Villeneuve. Pouco se sabe sobre sua versão, mas por sua sensibilidade ao filmar um conto introspectivo em A Chegada, e sua capacidade de conduzir uma grande produção em Blade Runner 2049, a expectativa é favorável. Resta saber se Villeneuve conseguirá retratar toda a magnitude de Arrakis.

Mesmo após tantas adaptações, Duna segue mudando a face da ficção científica, assim como Paul pretende “mudar a face de Arrakis” com uma terraformação levada a cabo nos livros subsequentes, uma versão global do fenômeno que Herbert testemunhou no Oregon.
Em um conto, Jorge Luis Borges descreve o Livro da Areia, de páginas infinitas, “porque nem o livro nem a areia têm princípio ou fim”. Mas a obra poderia muito bem se chamar Duna.
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*André Cáceres é jornalista e escritor. Autor de Cela 108 (Multifoco, 2015) e coautor de Corações de Asfalto (Patuá, 2018), escreve sobre literatura para o jornal O Estado de S. Paulo.
** O texto acima faz parte do segundo fascículo da mostra Fronteiras Finais, ciclo de cinema organizado pela Aleph, Projeto Replicante e CineSesc, que celebra a chegada do homem à Lua e faz uma contagem regressiva para o aniversário de 50 anos do feito. Para informações sobre a segunda fase da mostra (que ainda segue em exibição) clique aqui.