*Por Taize Odelli
Viagem no tempo é aquele tema que fascina e amedronta ao mesmo… tempo. Se já temos que lidar com sentimentos conflitantes vivendo no presente, imagina como seria se pudéssemos viajar pelo passado ou para o futuro? Talvez seja assim que os “Eternos” de Isaac Asimov se sentem.
O fim da eternidade é um romance em que viajar no tempo é comum e imprescindível para o futuro da humanidade. Alocado no século 575, Andrew Harlan é um Técnico e, por ter essa profissão, é visto com desdém pela maioria dos outros funcionários da Eternidade. Seu trabalho é vagar pelo tempo e realizar pequenas alterações a fim de atingir a máxima mudança desejada para tornar a humanidade melhor — evitando guerras, catástrofes e outros acontecimentos que afetam negativamente a vida do homem na Terra.
Mais do que uma viagem no tempo, Eternos como Harlan realizam uma “gestão do tempo”, indo e vindo entre o passado e o futuro para alterar a Realidade. Uma coisa meio Efeito borboleta, aquele filme com Ashton Kutcher que mexeu com a cabeça de 98% dos adolescentes dos anos 2000 (dados não confirmados, rs). Você já sabe, né? “O bater das asas de uma borboleta pode causar um furacão no outro lado do mundo.” A menor alteração na Realidade na obra de Asimov causa um efeito que pode ser gigantesco.
Deslocar um objeto de uma estante para a outra pode evitar a invenção de uma arma que, por consequência, evitará uma guerra. Matar um indivíduo que futuramente teria um efeito negativo na sociedade pode tornar o mundo um lugar melhor de viver — como aquele episódio de Twilight Zone em que uma mulher descobre poder viajar no tempo e decide matar o bebê Adolf Hitler e evitar a Segunda Guerra Mundial.
Mas, ao contrário de Efeito borboleta e desse episódio de Twilight Zone, os Eternos sabem o resultado de suas mudanças temporais. Computadores, Sociólogos, Mapeadores de Vida, Observadores e Técnicos formam uma equipe que analisa as consequências de todas as mudanças e escolhem a mais adequada para o objetivo que querem alcançar. Essa gestão do tempo é extremamente controlada e burocrática. Tudo é analisado com cuidado para que nenhuma mudança gere um mundo pior. É pura matemática, mas também envolve muita ética.
Acontece que, ao realizar uma mudança na Realidade, essa realidade deixa de existir, afetando todas as pessoas que vivem nela. Você não é mais você, seus pais não são mais seus pais. A personalidade e a história de vida de alguém muda completamente ao se mexer no tempo. Ou seja, Harlan é o responsável por fazer “vidas” inteiras desaparecerem. É necessário frieza e autocontrole para realizar isso, coisas que os outros Eternos não têm.
A questão é que Harlan é atingido pelo vírus do sentimentalismo ao se apaixonar e evita uma mudança na Realidade para preservar a mulher que ama. E aí temos toda a trama do livro: o questionamento da existência da Eternidade. A ficção científica, como sempre, vai muito além de tecnologias avançadas e das viagens no tempo e espaço.
É interessante notar como histórias de viagem no tempo sempre tocam no íntimo das personagens. No início, elas pensam em usar essa tecnologia ou dom para o bem da sociedade, mas a maior motivação para realizarem mudanças que podem alterar todo o mundo é sempre pessoal.
Umbrella Academy, o quadrinho criado por Gerard Way (saudades, My Chemichal Romance) e Gabriel Bá, é um bom exemplo disso. Perdido no tempo durante anos e anos, o Número 5 vislumbra um futuro de destruição e consegue “retornar” e alertar seus irmãos sobre o fim. Como uma família 100% disfuncional e cheia de problemas psicológicos, essa “missão” de salvar o mundo fala muito mais intimamente do que coletivamente. A viagem no tempo, tanto no centro da trama como na própria estrutura narrativa, revela os traumas do passado, os gatilhos, os bloqueios, enfim, tudo o que afeta a vida íntima de cada personagem. Viajar no tempo não é só uma questão de tornar o mundo um lugar melhor — ou, simplesmente, de salvar o mundo. É auto sobrevivência.
Sim. Às vezes é melhor dizer “Dane-se o mundo! e usar a viagem no tempo apenas para seus desejos pessoais mesmo, cagando para o bem maior ou a grandeza. É o caso do filme Questão de tempo, em que o protagonista Tim, após descobrir que tem o dom (hereditário) de voltar ao passado, decide usá-lo para conseguir uma namorada, Mary.
A motivação de Tim é puramente individual. Ele não leva em consideração o resto do mundo — dependendo do ponto de vista, nem leva em consideração a própria Mary. Cada errinho ou julgamento do presente pode ser alterado quando ele entra em um lugar escuro, fecha os olhos, se imagina naquela situação do passado e, tcharã, volta no tempo para corrigir as gafes. Mas, assim como na Eternidade, pequenas mudanças causam grandes consequências, e as alterações “inofensivas” de Tim no tempo também cobram o seu preço.
A história de Andrew Harlan também segue essa linha. A partir do momento em que deixa de ser um burocrata exemplar em seu trabalho, ele se torna uma pessoa capaz de sentir e questionar. E isso acontece quando encontra seu interesse amoroso, alguém capaz de alterar toda a sua visão do que é o mundo e a vida. A possibilidade de viajar através dos séculos, qualquer século, lhe fornece informações para estudar seus passos a fim de salvar esse relacionamento.
Outro paralelo que podemos fazer aqui é com A chegada, filme baseado no conto “História de sua vida”, de Ted Chiang. Conforme avançamos na história, nos perdemos entre o passado, o presente e o futuro. Como a protagonista, Louise, adquire a capacidade de vivenciar o tempo de maneira não linear. Ela é capaz de ver tudo simultaneamente, e entender previamente as consequências de suas ações — como uma viagem no tempo interna. Sua principal missão é desvendar a linguagem dos alienígenas misteriosos que chegaram na Terra e se comunicar com eles, mas a principal motivação por trás disso tudo é a sua filha, personagem para quem ela conta sua história.
Para Harlan, a visão do tempo — ou melhor, da Realidade — é basicamente igual, mas acontece dentro de uma instituição, a Eternidade. No começo de O fim da eternidade, Asimov deixa esse mistério sobre a ordem em que os fatos estão acontecendo, indo e voltando na timeline da história. O que, para mim, é a melhor maneira forma de se contar uma história sobre viagem no tempo: sem linearidade. Tudo acontece ao mesmo tempo, misturado e entrelaçado.
Tirando uma tecnologia “arcaica” ou outra — como os cartões perfuráveis dos Computaplexes — O fim da eternidade é um romance que “viajou” muito bem no tempo. Prova disso é como ele, mesmo tendo sido originalmente publicado em 1955, dialoga com obras recentes. Porque o cerne das histórias de viagem no tempo nunca mudou de verdade: nosso maior desejo não é viajar no tempo apenas para observar como as coisas eram no passado ou serão no futuro. Sentimos esse impulso incontrolável e perigoso de querer mexer na realidade para conquistar um futuro melhor — ou salvar esse futuro.
É isso o que fascina e amedronta nas viagens no tempo: temos o direito de alterar a vida de milhões de pessoas para atingir esse objetivo que, por mais que consideremos ser coletivo, é, na verdade, individual? Quais as consequências disso? Seríamos capazes de realizar essas mudanças sem remorso algum? Conseguiríamos, caso um dia sejamos capazes de fazer essas viagens, apenas observar, sem mexer em nada? Sem ficar com vontade de mexer em nada?
Metidos como somos? Acho isso bem difícil.
– Clique aqui para comprar o seu exemplar de O fim da eternidade
*Taize Odelli escreve sobre livros há mais de 10 anos no site rizzenhas.com, é colaboradora do Posfácio e também mantém a newsletter sou meio vagabunda, mas sou boa pessoa, em que fala sobre livros, astronomia, música e o que mais aparecer. Também expõe seus gatos no Instagram.