*Por Braulio Tavares
Lançado pouco tempo depois de 2001: Uma odisseia no espaço (1968) de Stanley Kubrick, o filme Solaris (1971) de Andrei Tarkovsky foi inevitavelmente comparado com ele, e chegou a ser chamado de algo como “a resposta soviética”. Ou seja, foi inadequadamente arrastado para um confronto às cegas, típico da Guerra Fria. Sabe-se hoje que Kubrick já incluiu o filme russo numa de suas listas de filmes que admirava. Tarkovsky não tinha visto 2001 quando fez Solaris, e quando viu o filme americano, depois, achou-o “frio e estéril”.
Ambos são frios, e isto é uma das coisas que têm em comum. Os personagens de Tarkovsky experimentam emoções intensas, mas o tratamento em volta é todo frio, contemplativo. Um filme em que vemos mortes e ressurreições, mas a batida do coração nem muda. Já os personagens de Kubrick são impassíveis como avatares de videogame.
O crítico Philip Lopate prefere apontar semelhanças entre Solaris e Vampiros de Almas (1956), de Don Siegel, e Um Corpo Que Cai (1958), de Alfred Hitchcock. Neste último caso, ele indica a incapacidade do homem de proteger a mulher, os múltiplos disfarces ou “ressurreições” da pessoa amada, a repetição inevitável dos mesmos erros do passado.
Também é instrutivo comparar o filme de Tarkovsky com o livro que lhe deu origem (Solaris, 1961), por Stanislaw Lem, já chamado “o Jorge Luis Borges da Polônia”.
Lem é um autor conceitualmente ambicioso e muito prolífico. Uma das teses preferidas dos seus romances é o fato de que seremos incapazes de entender um alienígena quando nos depararmos com um. A ficção científica em geral teme essa possibilidade. Muitas histórias inventam máquinas tradutórias, intérpretes perfeitos, implantes semióticos; muitas pulp fictions mostravam diálogos imensos nos quais se pressupunha que os seres lagartiformes de Deneb falavam um inglês perfeito.
O alienígena (diz Lem) pertence a uma esfera mental inacessível à nossa, “não pode ser reduzido a conceitos, ideias ou imagens da esfera humana”. É assim o planeta-oceano Solaris, que a humanidade tempos atrás descobriu ser inteligente pelo modo como otimizava e mantinha sob controle sua órbita em torno de dois sóis. O planeta era capaz de alterar sua velocidade ou seu curso.
Lem parece ser mais frio do que os dois diretores acima. Desdenhou o filme russo dizendo que “não tinha escrito uma história erótica passada no espaço”.
No livro, de fato, explora-se muito mais o planeta e os fenômenos incompreensíveis que ali ocorrem, como quando o planeta ergue no ar enormes formações de plasma e cria sobre a própria superfície algo equivalente a catedrais góticas de tamanho descomunal, que logo se desfazem. Há um capítulo inteiro dedicado à literatura solariana. Um capítulo borgiano no qual se descreve uma malha complicada de pesquisas, teses, relatos, tentativas de sínteses, uma rede de competições e invejas acadêmicas.
Para Lem, nunca conseguiremos compreender um alienígena. O alien será sempre o Inefável, o Impenetrável, o Incognoscível.
Lem vê o planeta como um poço de memória e de atividade incessante. Tarkovsky muda de ângulo e vê essa mesma profundidade e espessura em seus personagens humanos, especialmente o psicólogo Kris Kelvin. A ele cabe fazer uma última visita de inspeção na estação espacial que orbita o planeta Solaris, e que está prestes a ser desativada. O que ele encontra quando desembarca na estação vai tirar sua vida dos trilhos.
Há outra semelhança entre Solaris e 2001, dois filmes tão diferentes. É que ambos recorrem à tecnologia espacial e futurista do gênero, mas não temem usar contrastes cronológicos para dar mais volume a ela.
Eduard Artemiev, o compositor da trilha sonora de Solaris, lembra o amor do cineasta pela música de Bach e o modo como a inseriram no filme. Artemiev cita Tarkovsky:
“É o mesmo senso de ‘profundidade por contraste’ que Kubrick obteve com o Danúbio Azul para musicar a dança das espaçonaves. Quando se esperava algum tipo de música eletrônica ou vanguardista, ele trouxe a valsa de Strauss e o tempo da história se elasteceu rumo ao nosso passado cultural em comum.”
Tarkovsky é um diretor de temperamento sensível e severo, e está mais preocupado em recontar ao seu modo a história dos seus personagens do que em consultar algum menu de convenções da ficção científica. A água e a chuva, elementos plásticos e dramáticos constantes nos seus filmes, aparecem aqui como uma espécie de passagem líquida entre o mundo sólido na escala humana e a realidade mais ampla abrangida por Solaris. Ou a do planeta-memória que cada um traz dentro de si, e que lhe é tão familiar e tão estranho quanto a qualquer cientista que ali desembarcar.
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*Braulio Tavares é escritor e pesquisador de ficção científica e literatura fantástica. Suas publicações mais recentes nesta área são o livro de contos Sete Monstros Brasileiros e a antologia Detetives do Sobrenatural (ambos pela Casa da Palavra, em 2014).
** O texto acima faz parte do primeiro fascículo da mostra Fronteiras Finais, ciclo de cinema organizado pela Aleph, Projeto Replicante e CineSesc, que celebra a chegada do homem à Lua e faz uma contagem regressiva para o aniversário de 50 anos do feito. Para informações sobre a segunda fase da mostra (que já segue em exibição) clique aqui.